quarta-feira, 21 de outubro de 2009

O náufrago

.....E assim o encontrei, profundamente humano, me olhando através das frestas que já começavam a abrir na muralha que sua dor desenhou.


Como uma borracha que passeia por um muro grafitado, desenhos vão surgindo, permitindo a entrada da luz que “apaga” as trevas da solidão.

Involuntariamente suas pupilas, há tanto dilatadas se comprimem. Aperta os olhos, tentando enxergar o que há muito sequer imaginava voltar a ver. E o que viu? Viu o mundo lá fora, em sua implacável rotina de gente circulando em calçadas e metrôs. A surpresa maior foi ver que nada parou, a não ser seu coração. Nem o SEU tempo parou, ele percebeu ao se olhar no espelho. O rosto branco, lívido, as olheiras roxas contornando o olhar doente. Roupa amassada, barba por fazer. Cabelos emaranhados de tanto receber as mãos engorduradas e freqüentemente salgadas pelas lágrimas, antes de secarem por completo.Na boca, o gosto de corpo pedindo por sobrevivência, falta de água, ar, alimento, sorriso.

Ele sabia!, desde o dia em que perdeu sua alma, castigou o corpo que agora estava frágil demais para reagir rápido, como sempre fora. Com calma e paciência começou a juntar seus cacos pela casa. Tomou um gole d’água. Telefonou ao disk pizza e assustou com o tom da própria voz. Tinha mudado, e vinha de dentro.

Jogou água no corpo todo e teve a sensação de um abraço quente que lhe varreu as dores e o fez respirar melhor. Fazer a barba lhe deu a sensação de vento gelando os poros e fazendo cócegas no rosto, ele quase sorriu...

Abriu bem os olhos quando olhou novamente para o mundo lá embaixo. Apartamento 86, tocou, e ele pode comer até sentir o estomago dilatar. Mas essa dor já não doía, aliviava.

Recortou um poema de Vinicius e colocou na moldura que outrora guardava o retrato de uma moça sorrindo feliz, abraçada ao seu amor. Essa foto já fora tantas vezes cortada, rasgada, amassada, queimada, como ele próprio também fora, mas a foto não sofreu: - Ela não sofreu, e de repente voltou a sentir o nó na garganta.

Ele sabia que não a tinha mais, porem, se sentia vivo, profundamente vivo.

Jogou fora o maço cheio de cigarros, vestiu sua camisa preferida e a bermuda, presente dela e saiu em busca do ar que lhe faltava. Lembrou de sua mãe e dos bons conselhos que passaria a usar. Aquele sorriso de canto de boca reapareceu e ele se embrenhou na multidão, porem, desta vez, enxergava o lado de fora.


6 comentários:

  1. Riqueza de detalhes no texto,.. mostra o valor de preciosos momentos de transformação que a correria não nos deixa ver...

    ResponderExcluir
  2. esses textos dão uma aflção e fazem a gente refletir.gostei

    ResponderExcluir
  3. Adorei o texto, alias adorei todos os que ja li nesse blog. Continuarei lendo :)

    ResponderExcluir
  4. Nossa
    Os detalhes são impressionantes. Sério mesmo! Incrivel sua maneira de escrever!
    Muito bom!

    http://cerebro-musical.blogspot.com

    ResponderExcluir
  5. o texto é muito bom.. ñ só esse mas os outros tbm .. parabens pelo blog...

    ResponderExcluir
  6. tem selinhos pra ti no meu blog, e o livre pode pegar tbm!

    http://lilyribeiro.blogspot.com/2009/10/selos_24.html

    ResponderExcluir

Hora verdade:- Conte pra mim o que você sentiu...